top of page

Um final de ufas!

Quando nos demos conta, estávamos eu e Pedro chorando, lágrimas pesadas e grossas molhando nossas faces, desolados com a partida da menina que alegrava nossas noites antes de dormir, tentando nos consolar com a ideia de que ela logo voltaria à Vila Vilekula, por mais que ela dissesse que não sabia quando voltaria, talvez quando tivesse 60 anos, ou mais... Minha voz embargava e era difícil prosseguir, mas eu era a contadora, tinha que conseguir ler as frases e atravessar a dor da partida.

No ano passado é que conheci Píppi Meialonga, essa menina maravilhosa criada por Astrid Lindgren em 1945, como um presente para o aniversário de 10 anos de sua filha. A escritora sueca, que viveu quase 100 anos (de 1907 a 2002), publicou ao longo da vida mais de 80 livros e foi ganhadora do Hans Christian Andersen, o prêmio mais importante da literatura infantil no mundo, no ano de 1958.

Na minha infância, porém, não soube dela, infelizmente. Mas Píppi é daquelas criações que encantam a todas as idades, e ao ler sua história para meu filho ficamos ambos apaixonados por essa menina doidinha, que vive sozinha numa casa cujo nome já é o máximo, Vila Vilekula, que faz sua própria comida, que decide a hora de ir dormir (e o faz, portanto, beeem mais tarde do que as outras crianças), que tem um macaquinho chamado de Senhor Nílson, e ainda por cima um cavalo de estimação, que não vai à escola porque não tem interesse em "aprendeção", mas que sabe mil e uma coisas e é divertida, criativa, sensível, inteligente, generosa e forte. Mas forte mesmo. Ela carrega o seu próprio cavalo no colo e o leva de um lugar para outro, quando sente que ele está cansado. Enfrenta tigres. Carrega quantas pessoas for preciso. Píppi cria confusão por não aceitar exatamente as normas sociais - sobretudo o comportamento imposto e esperado de uma criança -, mas é de uma bondade sem tamanho, conquistando todo mundo e a nós, leitores.

Depois de muito tempo passado desse primeiro contato, pegamos emprestado na biblioteca o exemplar de mais uma de suas histórias, Píppi a bordo, um "livro de piadas", como falou o Pedro, já que a menina contraria as expectativas e tem tiradas incríveis. E se no início ele estava um pouco ressabiado de eu contar para ele essa história, esquecido do quanto havia se divertido com o primeiro livro (chamado apenas Píppi Meialonga), logo às primeiras linhas já ria muito e torcia por ela e por seus dois amigos, Tom e Aninha, dois irmãos que moram na casa vizinha à da garota, criados por pai e mãe com muitas normas, mas que se deliciam com a companhia de Píppi e passam quase que o dia todo ao lado dela.

Píppi não tem mãe, mas desde o primeiro livro fala que seu pai é um pirata cujo navio naufragou, mas que certamente não se afogou, isso seria impossível, e ele teria ido a uma ilha de canibais e virado o rei deles. Tudo nos parece um sonho da menina que não quer acreditar que perdeu também seu pai, mas, em Píppi a bordo, esse pai aparece e é praticamente tudo e mais um pouco que a filha havia falado sobre ele. E é aqui que, apesar da alegria que sentimos com esse reencontro, com o fato de ser verdade a história que a menina tinha criado, o que é uma surpresa incrível, é aí que começa o drama. Ela vai embarcar com seu pai e rumar junto a ele para a tal ilha fabulosa dos canibais, onde será princesa, e o fará tão repentinamente quanto a aparição do pai, no dia seguinte à chegada dele. A tristeza dos dois amigos é imensa e é nossa também, e conforme eu ia lendo a história para meu filho, ainda que buscasse valorizar o reencontro com o pai, não podia deixar de sentir a interrupção tão abrupta da amizade, e a monotonia que se abateria sobre a vida de Tom e Aninha, sem Píppi.

Quando nos demos conta, estávamos eu e Pedro chorando, lágrimas pesadas e grossas molhando nossas faces, desolados com a partida da menina que alegrava nossas noites antes de dormir, tentando nos consolar com a ideia de que ela logo voltaria à Vila Vilekula, por mais que ela dissesse que não sabia quando voltaria, talvez quando tivesse 60 anos, ou mais... Minha voz embargava e era difícil prosseguir, mas eu era a contadora, tinha que conseguir ler as frases e atravessar a dor da partida. Pedro já dizia da maldade da escritora em ter feito um final assim, não aceitava, era demais, quando de repente tudo mudou (não vou contar como, para não estragar) e por trás das lágrimas começamos a sorrir, num êxtase de alegria a dois e múltiplo, pois nossa alegria era a de Tom e de Aninha e da própria Píppi. Que alívio, que delícia, como era bom que tudo terminasse bem! A magia do final feliz é sempre intensa, por mais que saibamos que é uma história, que não é a nossa vida. Umberto Eco já procurou virar e revirar esse mecanismo, com sua inteligência tão arguta e deliciosa. E é sempre assim. Por mais que saibamos que é ficção, nos aliviamos quando o final é "feliz", e sofremos muito quando não é.

"Minha vida, nossas vidas

Formam um só diamante"

Já dizia Drummond, cantado pela voz doce de Milton Nascimento.

E o que me deixou mais encantada foi ouvir o qualificativo de Pedro para o alívio que sentimos: "Ainda bem! Agora sim, foi um final de ufas!"

Ufa!

 Siga o ARTeFATo: 
  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W
 POSTS recentes: 
 procurar por TAGS: 
A barca Marina

 

Aqui se fala de livros, filmes, eventos literários e culturais. 

Estamos no Youtube: Youtube.com/c/AbarcaMarina.

E também no Instagram e no Facebook.

Geração armada: literatura e resistência em Angola e no brasil
É o título do livro originado da dissertação de mestrado que defendi na USP, no programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Trabalhei com o romance A geração da utopia, do escritor angolanod Pepetela, e com o testemunho Viagem à luta armada, de Carlos Eugênio Paz, ex-militante da ALN.

bottom of page