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Anaïs Nin e o fascínio do diário


Terminei a leitura de Henry & June.

É difícil saber por onde começar a falar dessa obra - e aqui falo sem a pretensão de análise crítica nem qualquer outra coisa que o valha. Falo apenas como impactada por sua leitura.

Primeira sensação: sacanagem privar-nos da leitura do diário de Anaïs sem que as coisas que neste volume estavam em andamento tenham chegado a alguma definição. Nossa parte leitora que quer apreciar um enredo com começo meio e fim fica sedenta, muito sedenta. O livro finaliza e não sabemos se Anaïs manterá o relacionamento com Henry, se manterá o fascínio que sente diante de June, mesmo já dando sinais de estar desvelando cada vez mais a personalidade vertiginosa da esposa de Henry Miller. E Henry? Também não sabemos se ficará com June, ou se a largará para ficar só com Anaïs, como dizia querer conseguir fazer.

Bem, eu sei, esse é apenas um aspecto do que fica ao terminarmos a leitura da obra, esse desejo mesmo de quero mais, quero muito mais. Por outro lado, e em total oposição, o livro parece um grande excesso. Um excesso de dúvidas, um excesso de idas e vindas, de amor, de pena, medo. Nesse excesso, parece ganhar uma maior aproximação às indefinições cotidianas de todos nós, mas também um maior distanciamento da vida de qualquer um de nós, mortais, já que a vida de Anaïs, tal como narrada por ela em seu diário, é mais, muito mais do que nossas pequenas vidas. É romanesca por completo, e a forma como ela a escreve, com esse excesso de vida que chega em alguns momentos a ameçar enfastiar, é elaboração literária da vida, é ficcionalização de uma vida que, se "espremida" da ficção, ainda assim nos parece muito mais ficcional do que a nossa. Pela seleção que ela faz dos acontecimentos que registra em seu, afinal de contas, diário.

Colocando-se nesse lugar difícil não só de definir, mas de apreender - o do diário (e diário de uma escritora) que ela sabia que em algum momento seria publicado -, a obra de Nin, novamente, sacia-nos sob certos aspectos, e nos deixa com fome de outros. Sacia-nos no desejo de conhecer a vida (e mais do que isso, o olhar para a vida) de uma mulher que buscou seu caminho fora das convenções, na primeira metade do século XX. E nos deixa com fome de conhecer mais de seu trabalho, por exemplo.

Anaïs lançou um livro sobre o escritor D.H. Lawrence, e gostaria de saber mais sobre ele, mas, para dificultar, já verifiquei que não há tradução para o português...

No diário, Anaïs fala de seus escritos sendo lidos por Henry, mas ficamos sem saber ao certo quais seriam esses textos.

O envolvimento com o diário é tão grande para nós, leitores, que me apiedei de Hugo, o marido traído de Anaïs, torci a favor da paixão de Anaïs e de June, no início, mas, depois de ela, a autora da obra, envolver-se tão fortemente com Henry, claro que me irritei com June e seu domínio imperioso sobre o marido e sobre a mesma Anaïs. Torci pelo amor de Nin e Miller, e ainda por cima me incomodei com o dr. Allendy, o analista que se envolve amorosamente com a paciente. Não só me incomodei, mas, em verdade, me indignei. Ela, Anaïs, frágil, entregando sua confusão toda para que ele a ajudasse a organizar, sua frustração pelo abandono paterno quando ela era criança, sua necessidade de homens protetores, sua carência, sua insegurança, e ele repentinamente se mostrando encantado pela volúpia sensual dela!

Diante de Anaïs, uma personagem tão exuberante, também senti raiva em alguns momentos, assim como identificação em outras tantas. Ainda não assisti ao filme de mesmo nome, e vou aguardar mais um pouco para vê-lo. Tampouco quis por ora pesquisar informações sobre a vida que ela de fato teve depois que seu diário termina em Henry & June, no final do ano de 1932.

Quero por enquanto me impregar mais um pouco do texto de Anaïs, e não deixa de permanecer comigo a imagem dessa paixão pela escrita que a levou a escrever diários por sei lá quantos anos seguidos, desde que tinha 17 aninhos. Paixão por registrar a vida, para entendê-la, elaborando-a.

Por que essa mulher escreveu tão obsessivamente sobre o que vivia (sobretudo em sua busca interna)?

Por que dizem que sua experiência na escrita ficcional não está à altura de seus diários? Será que não está mesmo? E, se não, será que isso tem a ver com a dificuldade de projetar outras vidas?

Escrever sobre si é menos?

Não sei como responder a tantas inquietações que ficam. Sei, porém, que o registro da vida é tão apaixonado em Anaïs que nos faz, quase sem perceber, querer registrar a vida também. Afinal, sentimos, qualquer vida pode ser interessante de ser ler.

Ler um diário escrito por alguém há muito tempo, addemais, me faz perceber, de forma quase física, o tanto de vida que (eu espero) ainda tenho e, mais, o quanto há de indeterminado nisso. Daqui a vinte anos, o que serei? O quanto dos meus projetos terei conseguido realizar?

Não tenho a menor ideia. Enquanto isso, passo para a releitura de Hospício é Deus, finalmente reeditado, e saio das neuroses de todos nós (e, talvez, mais particularmente, das neuroses femininas, não por natureza, mas por cultura), para um nível mais complicado e que se funde à paranoia. Mas numa escrita também incrível e apaixonante.

Voltar a Maura Lopes Cançado é uma experiência envolvente demais. Eu a li pela primeira vez há apenas três anos, depois que o escritor Marcelino Freire, numa oficina, observo que um conto que eu escrevi trazia algo da escrita dessa mulher. Dela eu ainda sabia muito pouco - e o pouco que sabia vinha sobretudo por via de Carlos Heitor Cony, escritor que estudei no doutoramento e que foi amigo de Maura. Ele já escreveu crônicas bastante simpáticas à figura poderosíssima e frágil de Maura. E também tem um livro seu, uma reportagem, cujo texto final foi escrito por ela, Maura. Trata-se do livro O caso Lou, que Cony escreveu originalmente como reportagens para a revista Manchete, abordando um caso que ficou famoso no Rio de Janeiro no início dos anos 70 (cito de memória agora, não me lembro bem se foi em 72 ou 74), de um amoça de classe média carioca que matou, nas areias da Barra da Tijuca, ex-namorados seus, em crimes praticados junto com o que era seu atual namorado. A moça, filha de um militar, foi presa, e o texto de Maura é chocante porque ela fala do olhar de Lou, de seu jeito frio e distanciado da realidade, e nós, leitores, sabemos que Maura sofria de distúrbios pisquiátricos e mataria uma moça no hospício.

Mas, loucuras à parte, o texto de Maura é envolvente, sedutor mesmo, e sua escrita nos ensina também a escrever. Adiante falarei dele.

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Geração armada: literatura e resistência em Angola e no brasil
É o título do livro originado da dissertação de mestrado que defendi na USP, no programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Trabalhei com o romance A geração da utopia, do escritor angolanod Pepetela, e com o testemunho Viagem à luta armada, de Carlos Eugênio Paz, ex-militante da ALN.

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