top of page

Mayombe: Angola entre o passado e o futuro

  • Marina Ruivo
  • 1 de nov. de 2015
  • 9 min de leitura

Em Mayombe, Pepetela leva-nos ao interior da floresta do enclave de Cabinda, com sua coloração infinita de verdes, árvores enormes, lianas, perigos e encantamentos. O romance, iniciado a partir da redação de um comunicado de guerra, foi escrito às vésperas da independência, em 1971, em Cabinda, 2ª Região político-militar do Movimento Popular de Libertação de Angola – MPLA.

A narrativa lança-nos em plena guerrilha de libertação, revelando, mais que as ações militares, a humanidade dos combatentes: homens com seus problemas, sentimentos, dúvidas, críticas, sonhos e motivações específicas para participarem da luta, as quais se somam à convicção de sua necessidade:

Teoria sentia que o Comandante também tinha um segredo. Como cada um dos outros. E era esse segredo de cada um que os fazia combater, frequentemente por razões longínquas das afirmadas. (p. 11)

Teoria, o professor da Base, luta pela afirmação do “talvez”, como alternativa a um “universo de sim ou não, branco ou negro” (p. 7), contrapondo-se ao maniqueísmo. Além dele, o primeiro dos personagens a assumir claramente o papel de narrador, vamos conhecer outros entre os diversos “náufragos numa ilha que se chama Mayombe” (p. 14), como, por exemplo, o ex-marinheiro Muatiânvua, “o que é posto de lado, porque não seguiu o sangue da mãe kimbundo ou o sangue do pai umbundo” (p. 133), defendendo um nacionalismo internacionalista, acima das divisões étnicas; Mundo Novo, um intelectual dogmático na análise da realidade; Milagre, “o homem da bazuca” (p. 47); o Chefe do Depósito, para quem “as palavras só valem quando correspondem ao que se faz na prática” (p. 204); o Chefe das Operações, camponês que procura compreender a participação dos intelectuais na luta, os quais possuem “razões [...] diferentes, mas os gestos são os mesmos” (p. 231); André, o responsável pela retaguarda, que vive tranquilamente com o dinheiro do Movimento, completamente alheio às necessidades da Base.

Pelos constantes diálogos, pelo narrador em terceira pessoa – que muitas vezes utiliza o discurso indireto livre –, bem como pelos momentos em que compartilham a narração, assumindo-a em primeira pessoa, os homens do Mayombe manifestam suas vozes, pontos de vista e questionamentos. Como a oposição ao colonizador é uma convicção para os guerrilheiros, suas preocupações não se concentram nesse embate, mas já nos apontam os obstáculos a serem transpostos por eles mesmos, angolanos, para a efetiva libertação da nação, como o tribalismo, os conflitos entre intelectuais e camponeses, a corrupção e a política centralizadora do Movimento. Preenchendo o silêncio da floresta – “O silêncio era o Mayombe, sempre ele” (p. 18) –, encontram-se, portanto, os próprios angolanos, em posse de sua terra, vislumbrando e enfrentando as dificuldades.

A figura de maior destaque na realização e fomento de tais interrogações sobre o futuro de Angola é o Comandante da Base, Sem Medo. Despertando, de modo ambíguo, admiração para uns, antipatia para outros, cria à sua volta um magnetismo que não deixa de envolver, inclusive, os leitores. Aos 35 anos, é um homem irreverente, que busca acercar-se do segredo de cada guerrilheiro, compreendê-los em sua diversidade, desafiando os rótulos com que são enquadrados os seres humanos. Procura considerar a diversidade das pessoas, as individualidades, as particularidades, relativizando o mundo e as coisas:

Eu sou um herético, eu sou contra a religiosidade na política. Sou marxista ? Penso que sim […] Mas não acredito numa série de coisas que se dizem em nome do marxismo. Sou pois um herético, um anarquista, um sem-Partido, um renegado, um intelectual pequeno-burguês … Uma coisa, por exemplo, que me põe doente é a facilidade com que vocês aplicam um rótulo a uma pessoa, só porque não tem exactamente a mesma opinião sobre um ou outro problema. (pp. 119-20 )

Em meio aos vários eventos abordados pela narrativa – a missão à madeireira, a fome na Base, o ataque ao Pau Caído –, o romance enfoca a multiplicidade de relações que se criam entre os guerrilheiros, entre as quais uma é central para o significado de Mayombe: a que se trava entre o Comandante e João, o Comissário Político. João, com dez anos a menos que o Comandante, é um jovem sério, responsável, extremamente objetivo, racional e rígido em sua interpretação do mundo. Para a maioria dos guerrilheiros da Base é apenas um “miúdo” (p. 68), que de nada entende, um mero seguidor de Sem Medo. Para o Comandante, no entanto, a força da relação é inequívoca: "O que nos une, a mim e ao Comissário, é muito forte, demasiado forte" (p. 116).

No itinerário dessa amizade, projetam-se sinais de alguns fenômenos que o romance procura abordar. A sabedoria atribuída ao mais-velho sugere uma aproximação às culturas tradicionais angolanas, remetendo à noção de experiência como matriz de conhecimento, traço que será constante no repertório de Pepetela. Importa, porém, destacar que, sendo um homem da mudança, o "envelhecimento" do Comandante não se dá de modo pacífico. Sua inquietação é nítida e anuncia a sua inadaptação a qualquer situação que não fosse de transformação constante. Segundo o próprio autor, Sem Medo “só podia viver numa situação de luta. Era uma personagem que não tinha capacidade para viver além disso”[1]. Seu objetivo ultrapassa o desejo de somente expulsar o colonizador: “O que interessa é fazer a Revolução, mesmo que ela venha a ser traída” (p. 260). Sem Medo encontra sua plenitude ao conseguir o nascimento do novo, não necessariamente apenas em Angola. Assim, buscando imaginar onde estaria quando conquistada a independência, supõe: “Talvez noutro país em luta...” (p. 126). Nessa alusão, a narrativa faz pensar em Che Guevara, herói mitificado das gerações que nos anos 60 e 70 apostaram nas grandes transformações.

Aqui e ali, sutilmente, aponta-se na narrativa uma transformação da visão de mundo do Comissário, através de seus primeiros enfrentamentos, ao perceber os abusos e irresponsabilidades cometidos por André. A gota d’água para a desestabilização das verdades é a traição de sua noiva, Ondina, justamente com o responsável pela retaguarda. É nesse momento que a relação entre o Comandante e João ganha contornos mais nítidos, pois Sem Medo decide narrar-lhe sua história, desvelar seu segredo, pelo qual tornou-se um “novo homem, agora adulto” (p. 156) a partir de uma desilusão amorosa, o que delineia uma identidade de vivências entre as duas gerações de combatentes. A atuação de Sem Medo é, explicitamente, a da transmissão de experiências, buscando iniciar o novo (João) no mundo: “Eu fico com as marcas, mas tu podes ficar com a experiência. Por isso te vou dar os ensinamentos que dela tirei” (p. 159). É pela transmissão de conhecimentos e experiências, de uma geração a outra, que se possibilita a criação do novo, a ruptura. O diálogo entre gerações, dessa forma, é extremamente frutífero e realizado a cada passo na floresta.

Aproximando o seu texto, desde o início, ao mito de Prometeu, transformado por meio de sua identificação com Ogun, que se torna “o Prometeu africano” – imagem reforçada no decorrer do romance e retomada ao final –, Pepetela enfatiza a necessidade da transmissão da cultura, da tradição, como força criadora e libertadora do futuro. Como Ogun é o Prometeu africano, os dois mitos, africano e ocidental, modificam-se mutuamente. Tanto através de Prometeu, quanto de Ogun, traz-se para o Mayombe as noções de legado, transmissão, desobediência, enfrentamento do poder. Com o fogo, “precioso fator das criações do gênio”[2], Prometeu dá à humanidade “uma esperança infinita no futuro”[3]. Por sua vez, “Ògún possui privilegiado poder de transformação, que se manifesta em seu trabalho com o ferro e o fogo, assim como detém o poder de articular, em seu panteão, o sistema de crenças, códigos gestuais, práticas e celebrações rituais. É a divindade responsável pela transmissão dos valores e normas culturais”[4], sendo ainda o que “concede a preservação e a continuidade da vida humana”[5].

Também Ogun desafiou o poder, amargando, por isso, privações. No entanto, em Mayombe, os mitos já não são mais os mesmos, pois, ao serem amalgamados e transportados para a floresta de Cabinda, entre a guerrilha, alteram-se. Pela referência a esses mitos, transformados, valoriza-se em Mayombe a desobediência das novas gerações, a não submissão àqueles que as geraram, sem o consequente castigo. Trata-se de uma relação humana que se cobre de autoridade apenas durante um primeiro momento, o da formação dos novos, para logo desfazer-se em igualdade de condições. Desejando e procurando realizar a radical libertação está, principalmente, o Comandante.

Dessa maneira, as imagens de Prometeu, Zeus e Ogun estendem-se pelo romance. Se o narrador fala do Mayombe como Zeus vergado à coragem dos guerrilheiros, a imagem ecoa pelo texto, duplicando-se e reduplicando-se. Pode-se pensar, por exemplo, no próprio Sem Medo como um Prometeu-Ogun, “irreverente”[6], com o olhar espreitando o futuro, transmitindo suas experiências aos jovens e buscando que estes sigam, livres, o curso de suas vidas. Como imagem emblemática da vanguarda, ele é o que está na frente nas ações e, especialmente, o que ensina através do exemplo. É ele quem inicia na guerrilha os jovens recrutas enviados à Base por André: “Como ferreiro, os objetos de ferro, como revólver, faca, etc sempre pertenceram a Ògún, que também ensinava o processo de utilização e manuseio desses objetos”[7]. Especificamente em sua inter-relação com o Comissário, anseia pela desobediência: “Liberta-te, João, salta no abismo, recusa o último cigarro” (p. 185), mas, evitando ser incoerente ou falsificar a identidade do outro, não pode agir no lugar do amigo. Seu papel é o de fazer o máximo para que João liberte-se e ganhe consciência da transformação, insistindo, inclusive diante de Ondina que “— João não é um fraco, acredita. Não tem muita experiência, é tudo. Quem sabe se isto não o fará amadurecer?” (p. 192).

Rompendo com seu mais-velho, o Comissário acaba por aproximar-se ainda mais dele, intensificando a identidade. Pelas relações com uma mesma mulher, Ondina, duas gerações encontram-se. Ela é a imagem do elo de ligação, confundindo-se entre o velho e o novo, amando o que há de João em Sem Medo. É a ela que o Comandante revela sua consciência da relativa identidade entre ele e o Comissário, pela qual defende que os dois não são iguais, excluindo a ideia de cópia. Eles são e não são a mesma pessoa, pois há “dez anos de revolução de intervalo” (p. 253) entre eles. A revolução é o marco para a distinção das gerações de combatentes. Enquanto João “pertence à geração que vencerá”, ele pertence “à geração passada, aquela que foi marcada por toda a moral duma sociedade tradicionalista e cristã” (p. 252).

Nesses embates entre dois tempos, a narrativa sugere a vitória do novo, mas guardando em si o velho. Sem desvalorizar o velho, o romancista parece apostar justamente no elo de ligação entre este e o novo, ou seja, a própria tradição há de perdurar não como uma força aprisionadora do presente, imóvel, mas, ao contrário, como a passagem entre o passado e o futuro, propiciadora das transformações. É nessa transmissão que se possibilita o aflorar do novo.

Pepetela, cuja trajetória esteve ligada a atividades no terreno da educação, sugere seu potencial libertador, para uma libertação dos indivíduos a fazer-se pela, e paralelamente, à luta: “As pessoas devem estudar, pois é a única maneira de poderem pensar sobre tudo com a sua cabeça e não com a cabeça dos outros. O homem tem de saber muito, sempre mais e mais, para poder conquistar a sua liberdade, para saber julgar. [...], o objetivo principal duma verdadeira Revolução é fazer toda a gente estudar” (p. 79).

Ainda que o enredo de Mayombe desenrole-se num intervalo de tempo de menos de um mês, o romance analisa o passado e procura apanhar o futuro da nação, não apenas mediante o tema da Angola independente, que se faz ver em diversas conversas. A partir do presente, 1971, interroga-se o passado (e, nesse sentido, também Sem Medo é o passado, envelhecendo) e o futuro (com João).

Mayombe foi publicado pela primeira vez em 1980, quando já representava o passado recente da nação, propondo relações entre o passado, o presente e o futuro. A passagem do tempo, a própria história, é interrogada, considerando a coletividade – pela marca das gerações e da nação – e, simultaneamente, a individualidade, como sugere João, já de posse da voz narrativa, no epílogo do romance, quando se assume como o narrador titular: “E vejo quão irrisória é a existência do indivíduo. É, no entanto, ela que marca o avanço no tempo” (p. 268).

Com a morte de Sem Medo, João conscientizou-se de sua “metamorfose” (p. 268), que se realizou plenamente. Apropriou-se da experiência transformadora, convocando, portanto, sua memória a fim de narrar a própria libertação, a qual envolve a relativização das verdades, a percepção de que, para permanecer humano e não se tornar dogmático, chega-se sempre ao momento “de abandonar a capela!” (p. 121), nas palavras de Sem Medo. João apropriou-se do conhecimento do “caminho no deserto” que é “a fronteira entre a verdade e a mentira” (p. 268), com uma esperança crítica no futuro, que não deixa de se questionar, em constante transformação. Ocupando “o lugar que ele [Sem Medo] não ocupou”, João, agora um Comandante, contempla “o passado e o futuro” (p. 268). Afinal, como já dissera Pepetela na contracapa de Muana Puó (1969), “o presente continua a ser apenas um ponto de encontro – e de luta – entre o passado e o futuro”.

[1] Fragmento de entrevista com o autor. AMMANN, Margret & VENÂNCIO, José Carlos. “Pepetela, um construtor da angolanidade”, in: Jornal de Letras, Artes e Idéias. Lisboa, 2/10/1990.

[2] Idem, ibidem, p. 113.

[3] ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. [prefácio, introdução e notas: J. B. Mello e Souza]. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], p. 119.

[4] ADÉKÒYÀ, Olúmúyiwá Anthony. Yorùbá: Tradição Oral e História. São Paulo: Terceira Margem, 1999, (Coleção África), pp. 93-94.

[5] Idem, ibidem, p. 93.

[6] ÉSQUILO, op. cit., p. 120.

[7] ADÉKÒYÀ, Olúmúyiwá Anthony, op. cit., p. 103.

*** Esta resenha foi originalmente publicada em:

CHAVES, Rita & MACÊDO, Tania [orgs.]. Portanto... Pepetela. Porto/Luanda, Campo das Letras/Editora Chá de Caxinde, 2002, pp. 273-280. (edição brasileira: São Paulo, Ateliê Editorial, 2009, pp. 241-248.)

Comments


 Siga o ARTeFATo: 
  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W
 POSTS recentes: 
 procurar por TAGS: 
A barca Marina

 

Aqui se fala de livros, filmes, eventos literários e culturais. 

Estamos no Youtube: Youtube.com/c/AbarcaMarina.

E também no Instagram e no Facebook.

Geração armada: literatura e resistência em Angola e no brasil
É o título do livro originado da dissertação de mestrado que defendi na USP, no programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Trabalhei com o romance A geração da utopia, do escritor angolanod Pepetela, e com o testemunho Viagem à luta armada, de Carlos Eugênio Paz, ex-militante da ALN.

© 2023 por O Artefato. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook B&W
bottom of page