top of page

Viagem ao centro da África

O romance Viagem ao Centro da África, de Júlio Verne, apresenta a seus leitores, mediante um envolvimento prazeroso com o texto, muitas ideias científicas que eram desenvolvidas no século XIX, como o aeróstato (descrito minuciosamente em diversas partes da narrativa) e as detalhadas descrições geográficas do continente africano, por exemplo. A isso são adicionadas uma grande dose de fantasia para a resolução das situações, e a presença do imaginário europeu da época em relação à África.

O enredo desenrola-se a partir da travessia do continente africano, de oriente a ocidente, em um balão, pelo doutor Samuel Fergunsson. O principal objetivo do feito é descobrir a misteriosa nascente do rio Nilo, realizando descrições geográficas dos trechos transpostos. A viagem é feita a partir de Zanzibar – o local de chegada não é definido a priori, mas será o Senegal –, com a companhia de Ricardo Kennedy, amigo de Fergunsson, e Pepe, o fiel empregado do doutor. Tudo se passa em 1862, sendo de se destacar que o veio realista de Júlio Verne inicia a narrativa a partir dos preparativos da aventura científica, seus antecedentes, com a obtenção do apoio da Real Sociedade Geográfica de Londres. A primeira frase do livro é: “A sessão realizada pela Real Sociedade Geográfica de Londres, na Praça de Waterloo nº 3, no dia 14 de janeiro de 1862, foi muito animada” (p. 11).

A maior parte do romance centra-se na viagem, repleta de peripécias perigosas, mas sabiamente vencidas. Os três passam por intempéries da natureza – chuvas, furacões, falta d’água etc. – e também por episódios pouco amigáveis de contato com as populações encontradas. Por mais de uma vez, contudo, os viajantes são bem recebidos, por serem julgados deuses; afinal, vêm do ar, do céu.

No entanto, no romance de Júlio Verne, escritor da segunda metade do século XIX, a presença efetiva do sobrenatural não ocorre. Todos os problemas encontrados são resolvidos de modo a terem uma explicação científica, ou, ao menos, plausível, com um grande senso de verossimilhança. Tudo se passa como se pudesse realmente ocorrer da maneira descrita, bastando haver alguém com suficientes conhecimentos – caso do doutor Fergunsson – e, logicamente, as condições propícias reunidas, sempre à mão.

Dentro deste desejo de realismo, o espaço e o tempo da narrativa são particularizados e especificados. Os lugares são nomeados e caracterizados. A passagem dos dias é informada, com datas precisas: o trajeto de balão inicia-se em 19 de abril e finda em 24 de maio do mesmo ano, 1862. Como elemento constituidor desta impressão de realidade, o narrador é onisciente, com foco externo subjetivo[1], sabendo tudo, podendo dirigir-se ao leitor e, até, resolver ocultar deste alguns fatos: “Não havia resposta possível; mas Kennedy, teimoso, expôs uma série de objeções, fáceis de imaginar, mas muito longas para relatá-las aqui” (p. 22).

As principais personagens do romance são particularizadas, possuem nomes próprios e transitam ao redor de algumas linhas gerais. Dessa forma, o doutor Fergunsson é o sábio aventureiro, que tudo faz em nome da ciência, do bem da humanidade. Ricardo Kennedy é o caçador, portanto homem de ação, forte e grande. E Pepe é o empregado que apoia com abnegação seu chefe. Dentro desse plano, há poucas surpresas, pois Júlio Verne não está se debruçando sobre a interioridade das personagens. As surpresas ocorrem em relação às peripécias: é a aventura propiciada pela ciência que, de certa forma, diverte e instrui.

Aspecto crucial de Viagem ao Centro da África, portanto, é a transfiguração ficcional de temáticas importantíssimas à época histórica. Além das invenções científicas, a corrida à África, por parte das principais nações europeias, em busca de riquezas. O continente africano, no século XIX, era visto simultaneamente como um lugar a se conquistar e “civilizar” – já que seus habitantes eram considerados “seres inferiores” –, além de fonte de capital, por sua abundância de recursos minerais (ouro, diamantes, petróleo) e sua potencialidade como imenso mercado consumidor (a partir de 1850 o tráfico de escravos fora proibido).

Essas visões são insistentemente mostradas no romance. Assim, os africanos são “selvagens”, “bárbaros”, “ferozes”: “A turba dos pretos unia os seus rugidos aos gritos da corte, repetindo-lhe os gestos à maneira de macacos, o que produzia movimento único e instantâneo de milhares de braços” (p. 121). As riquezas materiais também aparecem, com a descoberta de ouro – que não estava nos objetivos da missão, e por isso não é levado – e a sedução que o marfim exerce em Kennedy.

Há ainda reflexões acerca do futuro da África – por parte do doutor Fergunsson –, supondo que ela será o novo “centro da civilização” (p. 70): “Aí, então, a África oferecerá às raças novas os tesouros acumulados há séculos em seu seio. Estes climas fatais aos estrangeiros se purificarão por meio de afolhamentos e drenagens. [...] E esta região sobre a qual estamos voando, mais fértil, mais vital que as outras, se transformará em algum grande reino, onde se realizarão descobertas ainda mais assombrosas que o vapor ou a eletricidade” (pp. 70-71).

Júlio Verne transmite, de maneira brilhante, diversas imagens existentes sobre a África na Europa do XIX, com suas profundas contradições. Assim é que o doutor Fergunsson, por exemplo, por mais de uma vez humaniza os africanos, como neste trecho, em que os compara aos franceses: “— É natural – tornou o doutor. Os camponeses da França quando, pela primeira vez, viram balões, dispararam as suas armas contra ele, tomando-os por monstros aéreos, não sendo, portanto, demais, que um negro do Sudão arregale os olhos” (p. 88).

Cabe ressaltar que Júlio Verne, pela boca da personagem Kennedy, apresenta uma crítica ao processo de industrialização ocidental. Num século de tantas transformações, novos medos eram também produzidos: “Por inventarem as máquinas, os homens serão engolidos por elas!” (p. 71).

Assim, mesclados ao clima reinante de aventura e perigo, resolvidos pelo artifício da ciência, há diversos fragmentos da visão de mundo da época. O romancista une ciência, fantasia e aventura, partindo do fato de que o continente africano era foco de atenções e ainda guardava muitos mistérios a serem decifrados, como ressalta várias vezes o doutor Samuel Fergunsson.

[1] Considerando a classificação apresentada por Nelly Novaes Coelho. Literatura Infantil. Teoria – Análise – Didática. 6. ed. São Paulo: Ática, 1993, pp. 66-7.

VERNE, Júlio. Viagem ao Centro da África. Tradução Mary Apocalipse. São Paulo: Clube do Livro, 1971.

 Siga o ARTeFATo: 
  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W
 POSTS recentes: 
 procurar por TAGS: 
A barca Marina

 

Aqui se fala de livros, filmes, eventos literários e culturais. 

Estamos no Youtube: Youtube.com/c/AbarcaMarina.

E também no Instagram e no Facebook.

Geração armada: literatura e resistência em Angola e no brasil
É o título do livro originado da dissertação de mestrado que defendi na USP, no programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Trabalhei com o romance A geração da utopia, do escritor angolanod Pepetela, e com o testemunho Viagem à luta armada, de Carlos Eugênio Paz, ex-militante da ALN.

bottom of page