Mas é
- Marina Ruivo
- 8 de fev. de 2016
- 4 min de leitura

A maioria das pessoas tem histórias de Carnaval. Eu não, até porque nunca fui aquilo – vago, bruxuleante – que recebe a designação de “foliona”. Nunca ou quase. Desde menina estranho o Carnaval e me sinto de fora, observando. Mesmo ao ver na TV, achava esquisito o desfile de mulheres quase nuas, e se conhecesse a palavra na época, diria que me sentia constrangida Forçando a memória agora, lembro outra coisa, talvez ainda mais constrangedora, essa sim de verdade: eu gostava de ver as disputas pelas fantasias mais bonitas, nos bailes de gala, pelas imagens da TV Manchete, Clóvis Bornay sempre como “hors concours”, termo que eu achava chique, mas que ao mesmo tempo me irritava, porque ele estava sempre acima dos outros, nunca se prestava a concorrer, era cansativo e sem graça.
Claro que tentei me integrar, diversas vezes, afinal estamos no país do Carnaval. Houve matinês no meu passado, a roupa de Paquita que vesti com as amigas, as três combinando, devíamos ter entre nove e onze anos. E o desfile pelas ruas do Centro, anos depois, um punhadinho de gente procurando criar o Carnaval do Minhocão, faz tanto tempo já. E não é que depois acabou virando mesmo um bloco e o pessoal que hoje desfila por lá nem faz ideia de que um dia nós saímos, poucos tambores, rosto e braços pintados, cheios de cores e miçangas, clamando um pré-Carnaval para o Centro, interrompendo o trânsito dos motoristas apressados e assustados, que na maioria das vezes acabavam dando risada e gostando também? Eu com o velho receio, a dúvida, mas buscando coragem e dançando junto, sorrindo.
Houve ainda o bloco que criamos na moradia estudantil, o desfile pelo campus da universidade, entrando prédio por prédio das faculdades, a moça com roupa de passista e eu e as demais amigas com o corpo recoberto. Colorido sim, mas cheio de roupas. A cara pintada, a boca cantando as músicas que o povo entoava e o violão chamava, com os tambores acompanhando. Mas nada disso trazia nem uma pequena parte da exuberância daquela menina odalisca que fui e que hoje é só fotografia. É, as tentativas que fiz para me contagiar com a tal da alegria carnavalesca foram quase sempre arremedos, e eu tinha a nítida percepção de que era uma péssima atriz de mim mesma.
Mas o Carnaval mais gostoso que vivi foi num mês de julho e apareceu sem que eu o invocasse nem me preocupasse em tentar representar um papel que não era meu. Ao contrário, assim que soube achei foi o fim. Feira de produtos orgânicos organizada por uns alemães no Riocentro. Como bons europeus atraídos pelo Brasil – e o preconceito escorria por mim ao olhar para o que considerava preconceito deles (olha a velha divisão eu e eles, aí) –, promoveriam alguma coisa ligada a escolas de samba como encerramento do evento, e assim que soube disso me incomodei. Quer dizer que só porque o troço é no Brasil já botam escola de samba? País desenvolvido olhando o subdesenvolvido, que merda.
Dizem que as coisas mais bonitas da vida acontecem quando a gente menos espera e duram pouco. Chavão bobo, claro. Mas tem horas que os chavões parecem se impor pra gente e nos dizer: Ei, você aí, olha pra mim que eu existo de verdade. Mas a gente continua não querendo ver, é tudo bobagem, e volta a se danar. Foi assim que se deu minha melhor história de Carnaval. As três passistas surgiram ao final de um dos corredores do saguão, penas rodando, pernas rijas, revestidas pelas meias-calças que as fazem ainda mais firmes e benfeitas. A bateria vinha atrás, formando um pequeno grupo de uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio de Janeiro, espalhando aquele som encantatório e nos fazendo segui-los.
Em meio aos arremedos de tentar fazer os pés obedecerem ao ritmo, fui puxada para o centro da roda pela mais bonita das três e tive que me virar, esconder no bolso não só a vergonha, como dizia minha avó, mas os julgamentos todos. Engoli-los rapidamente e apenas ver a passista girar e gingar os pés, requebrar os quadris e piscar os olhos, convidando-me não a tentar imitá-la, que isso era impossível, mas a me deixar penetrar pela cuíca, pelo tamborim e pelas batidas do surdo. Virei a cabeça para todos os lados e percebi que na verdade ninguém me olhava. Cada um se concentrava em vibrar e em olhar para elas, eu era apenas um pedaço no canto da tela, desempenhava o papel da que não sabe sambar do mesmo jeito que o alemão de barba enrolada que botava a mão nas cadeiras de outra passista e tentava acompanhar as batidas. Fechei os olhos e procurei então deixar o corpo sentir, enquanto a passista se requebrava e, com movimentos dos braços e mãos, procurava me guiar.
Se o que fiz naquele dia foi sambar, é difícil saber. O mais certo é dizer que não. Mas foi um dos momentos mais puros da minha vida. Sem olhar, categorizar, interpretar. Só viver. Depois de tudo acabado, bem depois, vi o grupo todo passar, indo embora, e as três passistas já despidas das roupas majestosas. Não se pareciam mais tanto com deusas, porque isso só o Carnaval fazia. Mesmo que em julho, mesmo que numa feira de produtos orgânicos, mesmo tendo sido contratadas, mesmo tudo que se pudesse pensar. Se fosse religiosa, poderia dizer que o troço tem poder. Mas aí não poderia dizer isso do Carnaval, festa pagã e, enfim, acho que já nem sei mais o que digo. Melhor tirar meu bloco do meio da rua.
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